Baixa renda não vê aumento de bem-estar

Fonte: jornal Valor

Pesquisa realizada em novembro pela consultoria Plano CDE mostra que as famílias de baixa renda consideram a própria situação financeira tão ruim quanto em 2015, período agudo da crise.

O recuo da inflação, o aumento da renda real, a melhora gradual do emprego e a queda da taxa de juros foram fatores decisivos para a recuperação da atividade econômica em 2017, mas ainda insuficientes para mudar de forma significativa a sensação de bem-estar das famílias, após três anos de crise econômica, especialmente nas classes C e D. É o que acreditam especialistas consultados pelo Valor, com base em indicadores e sondagens.

Pesquisa realizada em novembro pela consultoria Plano CDE mostra que as famílias de baixa renda consideram a própria situação financeira tão ruim quanto em 2015, período agudo da crise. Naquele ano, o Produto Interno Bruto (PIB) recuou 3,5%. A pesquisa mostrou, por exemplo, que as preocupações permanecem as mesmas: não ter dinheiro para pagar contas, ficar sem emprego, perder o padrão de vida conquistado, entre outros.

Para o sócio e diretor-executivo da Plano CDE, Maurício de Almeida Prado, a renda e o emprego são determinantes para a sensação de bem-estar. De um ano para cá, a renda média real até cresceu 2,6%, para R$ 2.142, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad Contínua), do IBGE, mas a melhora não foi para todos. Existiam 12,6 milhões de pessoas em busca de emprego no país em novembro.

“As famílias abriram mão de muitas conquistas e, por isso, a sensação de melhora é incipiente. A melhora que existe é muito desconfiada, muito tímida. Da mesma forma como as famílias demoraram a aceitar que a crise seria longa, agora demoram a acreditar numa recuperação consistente”, diz Prado. A pesquisa, segundo ele, mostra que famílias das classes C, D e E estão economizando ainda mais em restaurantes (77% do total), lazer (59%), vestuário (49%).

Outros levantamentos mostram que pouca coisa mudou no perfil de consumo das famílias ao longo de 2017. A Kantar Worldpanel, por exemplo, acompanha, por meio de visitas domiciliares, produtos que entram em 11.300 lares a cada semana. Segundo Tiago Oliveira, analista da Kantar, o consumidor não voltou a se comportar como antes da crise. Ele afirma que praticamente todas as tendências percebidas em 2016 continuaram as mesmas no ano passado.

“As cestas de compras são ainda dependentes de promoção para crescer e há cada vez mais promoções, ainda que essa tática não costume a trazer retorno para certas marcas”, disse Oliveira. “Com todo o crescimento populacional dos últimos três anos e com o aumento da oferta de alimentos, o volume consumido ainda é o mesmo de 2014, em quilos e em litros.”

De acordo com a Kantar, itens básicos do carrinho de compras cresceram mesmo na crise, como margarina, azeite, creme de leite, maionese. Outros itens básicos perderam espaço, mas já retornaram ao padrão de consumo – manteiga, extratos, água mineral. Itens considerados não essenciais ainda sofrem com o novo padrão de comportamento do consumidor (cremes, sorvete, congelados prontos, sopa e refrigerantes).

Para especialistas, a queda da inflação de alimentos tem potencial para gerar bem-estar, sobretudo para as famílias mais pobres. De acordo com o IBGE, os alimentos representam quase um terço do orçamento das famílias de baixa renda (que vivem de um e cinco salários mínimos mensais). A variação de preços para essas famílias é medida pelo INPC, que foi de 2,07% em 2017, menor resultado da série histórica da pesquisa, iniciada em 94.

Na pesquisa realizada pela Plano CDE, contudo, 68% das 1.037 pessoas de todas as classes sociais discordaram totalmente da afirmação que a inflação caiu e os preços pararam de subir. Do total, 27% concordaram em parte com a afirmação. Somente 6% delas concordaram totalmente com a ideia de que os preços pararam de subir. “O economista olha o resultado de inflação e diz que ela caiu. Mas o poder de compra, o bolso do consumidor, não melhorou, ele só parou de piorar, na visão deles”, diz Prado.

Essa percepção é compartilhada por Tiago Brito Costa, 33 anos, morador de Osasco, em São Paulo. Apesar da queda de preços de alimentos detectada pelos indicadores, ele acredita que os produtos continuam caros, com exceção de frutas e algumas verduras. Tiago perdeu emprego na Embratel um ano e meio atrás. Casado, com dois filhos, se virou como pôde: instalou antenas e passou a vender ovos de galinha em seis feiras de Osasco.

“O aluguel até deu uma baixada de preço, mas a conta de luz subiu, a gasolina está muito mais cara, chega a ficar acima de R$ 4 por litro. Então, as coisas ficaram bem mais caras do que antes da crise”, avalia Tiago. “Oportunidade de emprego até acredito que existe, mas as empresas estão selecionando demais, exigem que o candidato tenha muitas qualificações, atue em várias funções ao mesmo tempo. E poucos têm isso.”

Segundo Marcel Mattos, economista da Euromonitor, a percepção de melhora da economia depende de uma recuperação mais rápida do mercado de trabalho. O emprego informal tem sido uma válvula de escape para trabalhadores durante a crise. Por esse e outros fatores, ele projeta que o faturamento de segmentos das indústrias de bens e serviços só deve retornar ao nível pré-crise a partir de 2020.

“Na crise, além dos 12,6 milhões de desempregados, você tinha uma massa de consumidores empregados que começou a agir como se não tivesse trabalho. É o consumidor que vê o pai desempregado, o vizinho ficar desempregado. Diante de tanta incerteza, ele acaba também se retraindo. Por isso, o consumo caiu ao nível que caiu e vai demorar muito tempo para voltar. Esse empregado, no entanto, parou de se comportar como desempregado”, avalia Mattos.

Anthony Wanderson Santos da Costa, de 26 anos, que representa, em boa medida, a faixa da população que se beneficiou de conquistas sociais da última década, entrou para a estatística de desemprego uma semana antes do Natal. Foi demitido do posto de analista de qualidade de uma empresa de call center, na capital paulista. Outros 250 funcionários foram dispensados no mesmo dia.

Nascido em uma família pobre do Nordeste, de Arapiraca, em Alagoas, Costa perdeu, além do emprego, os planos de saúde e odontológico, vale-transporte e alimentação, parte das conquistas que significaram a melhora de seu bem-estar.

“Tenho um amigo que estava em estágio em um projeto que acabou no fim de novembro e não foi renovado. Tenho outro amigo que pediu demissão porque conseguiu algo melhor. Então, as coisas melhoram pouco para uns e não para outros. A minha qualidade de vida deve começar a piorar agora, dependendo do tempo que levar para conseguir um novo emprego”, disse o estudante, que mora na Vila Carrão, em São Paulo.

Filho de pintor de automóveis e uma funcionária pública (agente de combate a endemias), Costa cursou o ensino fundamental e médio em escolas públicas. Aos 18, mudou-se para Maceió, após o pai aceitar uma oferta de emprego, e completou o ensino médio. Na prova do Enem de 2014, obteve pontuação para uma bolsa do Prouni em comunicação social na Fiam-Faam, faculdade de São Paulo.

Depois de inicialmente viver com os tios em São Paulo, conseguiu emprego em agosto de 2015. Com o trabalho formal veio uma série de benefícios e a possibilidade de ajudar os pais no Nordeste. Naquele ano, com a recessão em curso, o mercado de trabalho já mostrava reflexos da crise. A taxa de desemprego fecharia o ano em 9%. Apesar disso, manteve-se empregado até dezembro de 2017, quando foi demitido.

“Não pago hoje plano de saúde, porque é muito caro. Até percebi que os preços de alguns alimentos baixaram no supermercado ao longo do ano, mas a conta de luz ficou mais cara também”, disse Costa, que tem custo de vida de R$ 1.100 e busca oportunidade em comunicação social. “É claro que, se surgir oportunidade em outra área, vou aproveitar. Com a rescisão e cinco meses de seguro-desemprego, tenho alguns meses de fôlego para pagar contas.”

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