Famílias fazem dívidas para cobrir orçamentos

Fonte: Valor Econômico

O avanço do crédito entre as pessoas físicas tem sido festejado como um indicador de recuperação econômica, mas também exibe um lado preocupante.

Isso porque fazer dívida para pagar dívida ou parcelar os gastos do dia a dia tem sido um comportamento que começa a se consolidar entre as pessoas físicas diante da persistência de um “modo crise” no mercado de trabalho em 2018. Com a falta de consistência na recuperação do emprego e da renda no Brasil, a pressão sobre os orçamentos das famílias tem ficado cada vez mais elevada, dizem economistas.

Embora exista uma relação de causalidade entre o aumento de oferta de crédito e o crescimento do consumo, já surgem indícios de que a intenção de compra passa a dar lugar a outros objetivos na retomada de endividamento das famílias. “Três motivações têm ficado mais fortes hoje em dia para a tomada de recursos pelos cidadãos: a tentativa de limpar o nome, refinanciar ou, eventualmente, liquidar dívidas mais caras e tentar ganhar fôlego no orçamento”, afirma o professor de economia do Insper, Otto Nogami. “Apesar da crise, muitas famílias não conseguiram adequar seu dispêndio de acordo com a disponibilidade de renda”, acrescenta.

Os números do Banco Central (BC) sobre crédito bancário mostram que a taxa de endividamento das famílias, sem considerar o financiamento habitacional, teve comportamento decrescente ao longo de 2017. A partir de janeiro deste ano, porém, o indicador voltou a crescer todo mês e, em maio – último dado conhecido -, atingiu 23,3% da renda acumulada em 12 meses, maior patamar em 14 meses.

O comprometimento da renda das famílias com o serviço de dívidas, sem considerar o financiamento habitacional, apresentou comportamento semelhante. A taxa recuou ao longo de 2017, mas voltou a crescer a partir de janeiro deste ano, segundo dados do BC. O índice de 17,77% em maio é o maior em oito meses, mas pode ser considerado relativamente confortável, quando comparado à máxima histórica de 21,34%, de novembro de 2011.

Apesar do consistente avanço do endividamento das pessoas físicas neste ano, a pesquisa mensal do comércio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra um comportamento mais errático no volume de vendas do varejo. O levantamento mais recente mostra que, na comparação com o mês anterior, março registrou subida de 1%, enquanto abril teve crescimento de 0,7%, mas maio apresentou recuo de 0,6%, provavelmente impactado pela greve dos caminhoneiros. Na comparação com o mesmo período de 2017, a expansão se mostra mais consistente, com altas de, respectivamente, 8%, 0,6% e 2,7%.

Esse avanço, porém, revela-se concentrado em itens do dia a dia. Gastos com supermercados, alimentos e bebidas, por exemplo, representaram o maior peso desse crescimento, com subidas de 15,4%, em março, 0,1%, em abril, e 8%, em maio. Em seguida aparecem as despesas com artigos de uso pessoal e domésticos, com expansão de 13,9%, queda de 0,1% e alta de 6,0% na mesma base de comparação.

Bens de consumo duráveis, como móveis e eletrodomésticos, que costumam acompanhar a melhora da renda, do emprego e da economia, patinaram no período. Em março, o volume de vendas desse grupo caiu 3,2% na comparação anual. No mês seguinte, houve subida de 5,5%, mas, em maio, ocorreu nova queda de 6,1%.

Uma pesquisa do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) ilustra esse lado sombrio do uso do crédito devido ao aperto financeiro. Segundo levantamento feito em julho, quase metade (46%) das pessoas que usaram cheque especial, uma das modalidades de empréstimos mais caras do mercado, nos últimos 12 meses utilizaram a linha todos os meses. Entre as razões citadas, figuram quitar dívidas, cobrir gastos de emergência e amenizar o descontrole das contas. Outro levantamento do SPC revela ainda que 20% dos usuários enxergam o cartão de crédito como extensão da própria renda.

Com o mercado de trabalho refém do ambiente político, a fraca recuperação do emprego, concentrada em vagas informais, tem pesado cada vez mais na saúde financeira das famílias. “A recuperação do mercado de trabalho parece ter pedido fôlego em termos de criação de vagas, com aumento da informalidade”, diz o técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Paulo Levy. De acordo com o analista, “o desemprego parou de cair, mas estabilizou em patamar elevado”.

O último dado da pesquisa nacional por amostra de domicílio contínua mensal do IBGE (PNAD) indica que, no trimestre encerrado em maio, o desemprego alcançava 12,7%, o que representa 13,2 milhões de pessoas sem trabalho. No período, a informalidade cresceu 2,9% ante o trimestre anterior, e subiu 5,7%, quando comparada ao mesmo período do ano passado. Na comparação anual, a taxa de informalidade cresce continuamente desde a metade de 2016. “A ocupação [de vagas] está se dando principalmente no setor informal, a ocupação com carteira assinada ainda está caindo na comparação anual”, afirma Levy.

De acordo com a economista-chefe do SPC, Marcela Kawauti, “se além do desemprego clássico, incluirmos os trabalhadores subutilizados, ou seja, aqueles que trabalham menos horas do que gostariam, e quem desistiu de procurar emprego, o número atinge 25 milhões de brasileiros, ou seja, um em cada quatro pessoas em idade ativa”.

Quase metade, 46%, de quem usa cheque especial precisou da linha todos os meses no último ano, diz SPC

Esse aumento da informalidade tem sido sentida pela plataforma de crédito digital Simplic, especializada em empréstimo para pessoas negativadas ou sem comprovação de renda. Segundo a fintech, a participação de autônomos e trabalhadores informais na base de clientes da empresa, que conta com 2 milhões de pessoas, cresceu 72% no primeiro semestre. A empresa registrou ainda aumento de 82% no número de solicitações no período em relação ao ano passado.

Segundo Rogério Cardozo, diretor-executivo da Simplic, que pertence à companhia de serviços financeiro americana Enova, “o mercado de trabalho não está andando como se imaginava no início do ano, o que a gente sente é que essas pessoas perderam o emprego e não conseguiram retornar ao mercado formal”. Conforme o executivo, “nossos clientes são aqueles que não tem acesso ao crédito bancário tradicional, que nos veem como praticamente uma das únicas opções”.

A perspectiva de retomada mais lenta do que o esperado da economia e do emprego já começa a se refletir nos sinais de confiança do consumidor. O Índice de Intenção de Consumo das Famílias (ICF), calculado pela Federação do Comércio de São Paulo (FecomercioSP), registra em julho a quarta queda consecutiva. No mês, o indicador atingiu os 86,2 pontos, recuo de 3,9% na comparação com junho.

Conforme a FecomercioSP, os sete itens que compõem o ICF caíram em relação a junho, situação que não ocorria desde maio de 2016, no auge da crise do impeachment da ex-presidente Dilma Roussef. A maioria dos entrevistados, 54,1%, aponta estar consumindo menos do que há um ano. “Essa sequência negativa, que se iniciou em abril, evidencia a deterioração das condições econômicas das famílias”, diz Altamiro Carvalho, assessor econômico da entidade.

Outro referencial, o Índice de Confiança do Comércio (Icom) da Fundação Getulio Vargas (FGV), caiu 0,8 ponto percentual em julho, para 88,8 pontos, no menor nível desde agosto de 2017 e também na quarta queda consecutiva. “A avaliação desfavorável sobre a demanda e a vagarosa retomada do mercado de trabalho contribuíram para a piora da percepção”, avalia Rodolpho Tobler, coordenador da sondagem da FGV-Ibre.

Indicadores antecedentes sugerem ainda a possibilidade de o índice de atrasos acima de 90 dias que está na mínima histórica no caso do crédito livre para pessoas físicas, segundo dados do BC em junho, possa começar a subir se não houver melhora das condições econômicas no médio prazo. O indicador de inadimplência da SPC, por exemplo, que considera qualquer atraso no pagamento de empréstimos avança mensalmente desde outubro de 2017. “A inadimplência baixa depende de o mercado de trabalho voltar por um período prolongado até que o rendimento cresça”, diz Marcela, economista do SPC.

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