Regulamentação retira direitos e pode judicializar migração
Fonte: Valor
Esperado por empresas, entidades de classe e trabalhadores estrangeiros, o decreto que regulamenta a Lei de Migração, publicado ontem no “Diário Oficial da União” foi alvo de várias críticas, que vão de questões humanitárias a trabalhistas.
Segundo especialistas, o texto, em algum pontos, reduz direitos previstos na própria lei, o que pode levar à judicialização. A nova lei substitui o Estatuto do Estrangeiro, que vigora desde 1980, marco legal criado durante a ditadura militar e com foco na segurança nacional.
Há problemas de legalidade nas regras que restringem a reunião familiar, reduzem prazos de regularização migratória e permitem a expulsão de estrangeiro irregular, entre outras, afirma Carolina Moulin, coordenadora da pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio.
“Um decreto não pode reduzir direitos e garantias previstos em lei. Acredito que algumas questões serão judicializadas e consideradas ilegais por contrariarem não só o espírito, mas o próprio texto da lei”, diz Carolina.
Para a professora, o decreto deixou vários pontos abertos e tornou as regras de imigração menos claras, justamente o oposto do pretendido pela legislação, “Questões que a lei buscava resolver, como a regularização de estrangeiros, como trabalhar no país, ficaram opacas”, disse.
Outro ponto muito esperado, e que acabou não contemplado pelo decreto, era a regulamentação dos vistos e autorização de residência por motivos humanitários. Havia grande expectativa de se resolver a situação dos migrantes que não eram abarcados pela condição de refugiados. “Ainda falta uma regra clara e o sistema de refúgio continuará pressionado”, diz a professora.
Carolina também critica a burocracia, que, segundo ela, aumentou. Aponta o excesso de discricionariedade das regras, deixando determinadas decisões na mão dos agentes migratórios, como policiais federais. Ela cita o artigo 27 que permite que seja negada a entrada de um estrangeiro no país, caso ele ofenda a autoridade de imigração. “Há um ranço autoritário ali.”
Diana Quintas, advogada especialista na área imigratória e sócia da Fragomen Brasil, também aponta problemas na área do trabalho estrangeiro. “O visto de visita engloba questões de trabalho e não deveria”, afirma. Ela cita como exemplo a atividade de consultoria e auditoria, que está sob o guarda-chuva “visita” e não “trabalho”. Esta foi uma das sugestões enviadas ao governo no curto período de consulta da regulamentação, mas que não foi acatada.
Outro problema da regulamentação apontado pela advogada é o período de transição da lei, que deve criar insegurança jurídica. O decreto diz que todos os processos relacionados a imigração protocolados até 21 de novembro terão seu direito resguardado em até 90 dias após a entrada em vigência da lei. Mas as autoridades responsáveis pela área migratória terão um tempo bem maior, até um ano, para adaptar seus sistemas. “Os prazos têm que coincidir”, afirma.
Diana ressalta ainda que as questões migratórias envolvem várias áreas do governo e que seria necessária a criação de um órgão interministerial que dê conta de todos os aspectos da área: humanitários, trabalhistas, entre outros. “A imigração, assim como o mercado de trabalho, é muito dinâmica, o ideal é que exista esse órgão”, diz. Neste sentido, afirma Carolina, do IRI, esperava-se que o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) se transformasse nesse órgão, mas seu papel não ficou claro na confecção das regras.
Com 318 artigos, o decreto trata de temas como visto, residência, refúgio, asilo político, regularização de imigrantes ilegais, deportação, entre outros. O texto confere aos estrangeiros residentes no país condições de igualdade com os brasileiros, como direito de circulação pelo território nacional, acesso aos serviços públicos, programas e benefícios sociais.