Tragédias anunciadas: duas em cada três pessoas que registram ameaças no Rio são mulheres

Fonte: O Globo

Parecia uma história de amor, daquelas apressadas: X. conheceu o corretor de imóveis Paulo Henrique Goulart e, cinco meses depois, mudou-se para a casa dele.

Mas o namoro desandou, e, em menos de um ano, ela estava de volta ao apartamento dos pais. Foi quando começou o pesadelo. Inconformado com o fim do relacionamento, Paulo Henrique ameaçou várias vezes X. e sua família, uma delas de arma em punho. Por conta disso, ela acabou conseguindo na Justiça uma medida protetiva contra o ex-namorado. Paulo Henrique foi proibido de ficar a menos de 500 metros de X., mas, como não foi encontrado para receber a intimação, continuou sua perseguição, sem ser incomodado por autoridades. Na última sexta-feira (29), ele concretizou o que planejava: disparou 11 tiros contra o carro em que a jovem de 24 anos estava com o atual namorado, perto da Linha Amarela. Os dois foram atingidos e sobreviveram, mas o corretor de 43 anos, que está sendo procurado pela polícia, não se conformou. No fim de semana, teria telefonado para parentes das vítimas, dizendo que “os dois não vão ficar vivos”. Acuada, com duas balas alojadas no corpo, à espera de cirurgia, X. hoje vive escondida. Sente-se sozinha, mas, na verdade, não está. O drama que vive é parecido com o de milhares de mulheres no Rio.

EX-COMPANHEIROS SÃO DENUNCIADOS

Um levantamento feito pelo GLOBO, com dados do Instituto de Segurança Pública obtidos via Lei de Acesso à Informação, mostra que mulheres são as principais vítimas de ameaças no estado. A cada três pessoas que procuraram delegacias do Rio entre janeiro de 2014 e dezembro de 2017 para denunciar esse tipo de crime, duas são do sexo feminino. No total, elas fizeram cerca de 182 mil registros, de um total de 278 mil. Os números mostram ainda uma realidade que X. conhece bem: em 20% dos casos envolvendo mulheres, os acusados são ex-companheiros.

— As ameaças acabam acontecendo principalmente quando um homem descobre que a antiga companheira está em outro relacionamento — afirmou a delegada Fernanda Fernandes, titular da Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) de Duque de Caxias, cidade que aparece em quarto lugar no número de queixas de ameaças contra mulheres, atrás apenas da capital, de São Gonçalo e de Nova Iguaçu.

Muitas vezes vítimas de relacionamentos abusivos, mulheres estão, cada vez mais, levando as denúncias adiante. Segundo um estudo divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Tribunal de Justiça do Rio concedeu 16.865 medidas protetivas em 2016. No ano passado, esse índice saltou para 25.358. O recurso, embora importante, nem sempre se mostra eficaz. X. havia conseguido o afastamento do ex-companheiro, mas, com a falta de intimação, a medida pouco adiantou.

— Ele só vai sossegar quando me matar — disse ontem X. ao “Jornal Nacional”, da Rede Globo, contando ainda que, ao procurar a polícia, ouviu de um delegado uma frase que não só se mostrou errada como demonstrou o descaso com que, muitas vezes, as queixas são tratadas. — Ele falou que esse tipo de pessoa nunca faz nada — lamentou a vítima, que está com uma bala alojada no peito e uma no braço direito.

Para Rute Alonso, presidente da ONG União das Mulheres de São Paulo, casos como o de X. demonstram que é preciso pensar em outros meios para garantir que a proteção às mulheres ameaçadas seja eficaz:

— Para algumas pessoas, receber a notificação das medidas protetivas é suficiente. Mas outras acabam se sentindo provocadas, ficam nervosas e acabam não cumprindo. O agressor poderia usar uma tornozeleira, ser rastreado pela polícia. A vítima também poderia ter acesso a algum programa que a avisasse que o agressor pode estar por perto, em caso de ele estar em liberdade.

Para a defensora pública Flávia Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher do órgão, apesar da inclusão de um artigo na Lei Maria da Penha que criminaliza o descumprimento de determinações judiciais por parte dos agressores, a Justiça muitas vezes resiste à versão das vítimas:

— Na prática, a gente vê resistência na aplicação dessa prisão preventiva (contra quem descumprir medidas protetivas). Foi uma inclusão recente na Lei Maria da Penha. Infelizmente, a culpa é desse sistema que desvaloriza a palavra da mulher. A denúncia dela é considerada uma informação unilateral e há muita resistência em aplicar, de forma geral, a Lei Maria da Penha.

Com cinco anotações criminais (por receptação de produto roubado, estelionato, lesão corporal e falsificação de documento público), Paulo Henrique teve prisão preventiva pedida pela Polícia Civil na sexta-feira, horas depois do crime, mas a Justiça ontem não informou se foi aceita. Mas, de acordo com o delegado Rodolfo Waldeck, titular da 32ª DP (Taquara), responsável pelo caso, investigadores vêm agindo:

— Estamos fazendo diligências para prendê-lo.

MEDIDAS PROTETIVAS

SEM ARMA

Se o agressor tiver porte de arma, este poderá ser suspenso pelo juiz

CONVIVÊNCIA VETADA

O agressor pode ser afastado de casa ou dos locais em que convivia com a vítima

DISTÂNCIA MÍNIMA

O agressor pode ser proibido de se aproximar da vítima e de seus parentes. O juiz determina o limite mínimo de distância

VISITAS SUSPENSAS

Se agressor e vítima têm filhos, as visitas podem ser suspensas ou restringidas

REPASSE DE DINHEIRO

Em último caso, o juiz pode determinar um valor em dinheiro destinado a garantir as necessidades básicas da ex-mulher e da família. O magistrado também pode decretar medidas que protejam a mulher, como determinar seu afastamento de casa, sem prejuízo de direitos, ou a restituição de bens subtraídos pelo agressor

ONDE DENUNCIAR

Central de atendimento à mulher: Telefone 180

Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM):

Av. Visconde do Rio Branco 12, Centro. Telefones: 2334-9859 e 3657-4323

Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher da defensoria pública do rio : Rua do Ouvidor 90, 4º andar. Telefone: 2332-6371

Disque-Mulher

Rua Regente Feijó, 15. Telefone: 2332-8249

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